Um epitáfio musicado para Warhol

quinta-feira, 31 de janeiro de 2008

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Em 1989, Lou Reed resolveu botar as desavenças com John Cale de lado e se uniu ao ex-companheiro de Velvet Underground para um disco. Não, não era a reunião da clássica banda (que chegou a acontecer brevemente em 1993 e 1996). Era para fazer um disco em homenagem ao amigo e ex-empresário/ financiador do VU, o artista plástico Andy Warhol que havia falecido dois anos antes.
Ao lado de Bob Dylan, Lou Reed ocupa o Olimpo na arte da “poesia jornalística” já que suas letras conseguem retratar personagens, situações e o zeitgeist de uma época tal qual uma reportagem sem deixar de lado o lirismo e a riqueza de vocabulário de um poema. Pode-se dizer que Reed e Dylan são uma espécie de Truman Capote e Tom Wolfe do rock.
Numa descrição rasa “Songs For Drella – A Fiction” poderia ser descrito como uma espécie de ópera-rock minimalista composta apenas de guitarra, piano e viola. Outros diriam que nada mais é do que um disco-tributo ou um disco-biografia. Na verdade o disco é tudo isso e mais um pouco. Trata-se de um álbum que ora pende para a homenagem, ora para o registro de fases da vida de Warhol, ora para um clima meio “expurgação de demônios” de Lou Reed. Esta última faceta é acentuada se levarmos em conta o relacionamento turbulento entre “biógrafo” e “biografado”. Por mais que Lou Reed diga a torto e a direito que trata-se de um disco-homenagem ficcional, é óbvio que não é bem isso. O adendo no título da obra é mero detalhe.
Esta turbulência entre ambos começou já nos primeiros anos de vida do Velvet Underground quando Warhol (que empresariava o grupo) praticamente obrigou Lou Reed a aceitar o sotaque germânico da cantora Nico no álbum de estréia da banda. Reed nunca foi a favor da idéia, mas acabou cedendo. Aceitou, mas nunca perdoou Warhol por isso.
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Warhol & Reed: uma relação conturbada

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À medida que o Velvet ia ganhando respeito e que Lou Reed ganhava fama por si só com sua carreira solo, mais ele esnobava e se distanciava do artista plástico única e exclusivamente com a intenção de provocar ciúmes no instável Warhol.
Apesar da famosa generosidade de Warhol, ele e Lou Reed possuíam traços de personalidade em comum. Ambos são tachados como “amáveis porcos egoístas, egocêntricos e centralizadores” – quem leu “Mate-me por favor” ou assistiu a “Factory Girl” tem uma noção do que estou falando. O ‘Drella’ do título era um apelido de Andy Warhol, um neologismo criado para retratar a personalidade andrógina do artista, uma mistura de Drácula e Cinderella.
“Songs For Drella” tem sim seus momentos ficcionais como prega Lou Reed (talvez quando algumas canções são conduzidas como se o próprio Warhol as estivesse cantando), mas parecem tão reais que é difícil acreditar que sejam 100% inventados. O disco segue uma linha quase cronológica abrindo os trabalhos com a bela “Small Town” em que Lou Reed utiliza brilhantemente sua língua afiada para retratar com uma delicadeza pesada o sentimento de desajuste na traumática infância de Warhol enquanto John Cale utiliza o piano para dar um toque erudito à canção. “De onde veio Picasso? / Não existe Michelangelo vindo de Pittsburgh (...)/ Quando você cresce numa cidade pequena / Com a pele ruim, olhos ruins, gay e gorducho/ as pessoas acham graça de você/ A melhor coisa de uma cidade pequena/ é que você sabe que tem que dar o fora”, diz a letra.
A já citada generosidade de Andy Warhol é retratada em “Open House”, numa referência direta à Factory, o estúdio/ atelier do artista onde qualquer pessoa podia ser uma estrela, ter os seus quinze minutos de fama. Ao mesmo tempo, a fragilidade emocional de Warhol também é citada. “Dou pequenos presentes às pessoas, assim eles se lembrarão de mim”, confessa o artista personificado na voz de Lou Reed.
A importância e poder do dinheiro na arte é o tema central de “Style it Takes” com um belo e irônico jogo de palavras de Reed cantadas por John Cale. “You've got the money, I've got the time/ You want your freedom, make your freedom mine/ (…)'Cause I have the style it takes/ and you know the people it takes”, em inglês mesmo que é para não perder o sentido.
“Work” é uma espécie de conversa entre Reed e Warhol acerca da obsessão deste último pelo trabalho. Já “Trouble With Classicists” trata do preconceito que as obras de Andy sofriam por parte dos mais conservadores. “O problema de um classicista é que ele olha para uma árvore/ Isso é tudo que ele vê/ Ele pinta uma árvore/ O problema de um classicista é que ele olha para o céu/ Ele não pergunta por que/ ele apenas pinta um céu”, alfineta a letra.
A angústia da rejeição de Hollywood pelos filmes “imorais” de Warhol é o tema de “Starlight”. “Faces And Names” versa sobre a insegurança do artista acerca de sua aparência. “Se todos parecessem a mesma pessoa, e todos tivessem o mesmo nome/ Eu não teria inveja de você/ e você não teria inveja de mim”.
Dois terços do disco dedicam-se basicamente a fatos e passagens da vida de Warhol. Mas é nas suas últimas cinco canções que o álbum realmente ganha razão de existir e Lou Reed resolve se desarmar e tocar em temas delicados. Temas como a tentativa de assassinato que Warhol sofreu em 1968 ao levar três tiros de Valerie Solanis – uma feminista radical que participou de alguns de seus filmes e que cometeu o crime sob a alegação de que Warhol “exercia muito controle” sobre sua vida (Lennon /Chapman alguém?). O atentado quase matou Warhol e o deixou com seqüelas (físicas e emocionais) pelo resto da vida.
Em “I Believe”, além de narrar todos os passos de Solanis no dia do crime, o carrancudo Reed ainda faz um mea culpa pelo fato de não ter deixado as picuinhas de lado e não ter ido visitar o amigo no hospital. “Nobody But You” trata do medo e angústia da morte pela qual Warhol passou durante o período pós-atentado – ele sofreu com sangramentos das cicatrizes durante os quase vinte anos de vida posteriores ao ataque.
A música mais impressionante de todo o álbum, entretanto, é “A Dream”, onde John Cale – amparado por um arranjo sombrio, quase fúnebre – lê uma espécie de reflexão de Warhol, já moribundo em seu leito de morte, acerca de sua trajetória pessoal e artística. A “música” termina com Cale suspirando como se estivesse morrendo. Aqui o lado mais assustador do Velvet se faz presente.
Na época do lançamento do disco, muitos pensaram se tratar de partes extraídas de um diário real de Warhol. Lou Reed, no entanto, diz não ser verdade e que foi ele quem inventou o texto. Real ou não, o fato é que no dito cujo vê-se um Warhol ressentido pelo fato de Reed não tê-lo convidado para seu casamento e de sempre ignorá-lo em público. “Eu odeio Lou, de verdade”, diz um Warhol rancoroso. Se terminasse aí o disco já seria merecedor de entrar para a lista de clássicos da música popular do século XX. Porém, Lou Reed ainda consegue surpreender mais uma vez e compõe a mais bela canção do álbum. Em “Hello, It’s Me” ele expurga todos os seus demônios e escreve uma verdadeira carta de amor em primeira pessoa a Warhol, pois segundo explica na canção, os diários de Andy não são um epitáfio digno. Poucas vezes foi possível ver Lou Reed tão dócil como aqui. Aposto que Drella ficaria feliz com a homenagem. Qualquer um ficaria.
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* "Songs For Drella" - Lou Reed & John Cale (1989)
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Abaixo o vídeo de Reed & Cale tocando "Small Town"

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