Um epitáfio musicado para Warhol

quinta-feira, 31 de janeiro de 2008

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Em 1989, Lou Reed resolveu botar as desavenças com John Cale de lado e se uniu ao ex-companheiro de Velvet Underground para um disco. Não, não era a reunião da clássica banda (que chegou a acontecer brevemente em 1993 e 1996). Era para fazer um disco em homenagem ao amigo e ex-empresário/ financiador do VU, o artista plástico Andy Warhol que havia falecido dois anos antes.
Ao lado de Bob Dylan, Lou Reed ocupa o Olimpo na arte da “poesia jornalística” já que suas letras conseguem retratar personagens, situações e o zeitgeist de uma época tal qual uma reportagem sem deixar de lado o lirismo e a riqueza de vocabulário de um poema. Pode-se dizer que Reed e Dylan são uma espécie de Truman Capote e Tom Wolfe do rock.
Numa descrição rasa “Songs For Drella – A Fiction” poderia ser descrito como uma espécie de ópera-rock minimalista composta apenas de guitarra, piano e viola. Outros diriam que nada mais é do que um disco-tributo ou um disco-biografia. Na verdade o disco é tudo isso e mais um pouco. Trata-se de um álbum que ora pende para a homenagem, ora para o registro de fases da vida de Warhol, ora para um clima meio “expurgação de demônios” de Lou Reed. Esta última faceta é acentuada se levarmos em conta o relacionamento turbulento entre “biógrafo” e “biografado”. Por mais que Lou Reed diga a torto e a direito que trata-se de um disco-homenagem ficcional, é óbvio que não é bem isso. O adendo no título da obra é mero detalhe.
Esta turbulência entre ambos começou já nos primeiros anos de vida do Velvet Underground quando Warhol (que empresariava o grupo) praticamente obrigou Lou Reed a aceitar o sotaque germânico da cantora Nico no álbum de estréia da banda. Reed nunca foi a favor da idéia, mas acabou cedendo. Aceitou, mas nunca perdoou Warhol por isso.
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Warhol & Reed: uma relação conturbada

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À medida que o Velvet ia ganhando respeito e que Lou Reed ganhava fama por si só com sua carreira solo, mais ele esnobava e se distanciava do artista plástico única e exclusivamente com a intenção de provocar ciúmes no instável Warhol.
Apesar da famosa generosidade de Warhol, ele e Lou Reed possuíam traços de personalidade em comum. Ambos são tachados como “amáveis porcos egoístas, egocêntricos e centralizadores” – quem leu “Mate-me por favor” ou assistiu a “Factory Girl” tem uma noção do que estou falando. O ‘Drella’ do título era um apelido de Andy Warhol, um neologismo criado para retratar a personalidade andrógina do artista, uma mistura de Drácula e Cinderella.
“Songs For Drella” tem sim seus momentos ficcionais como prega Lou Reed (talvez quando algumas canções são conduzidas como se o próprio Warhol as estivesse cantando), mas parecem tão reais que é difícil acreditar que sejam 100% inventados. O disco segue uma linha quase cronológica abrindo os trabalhos com a bela “Small Town” em que Lou Reed utiliza brilhantemente sua língua afiada para retratar com uma delicadeza pesada o sentimento de desajuste na traumática infância de Warhol enquanto John Cale utiliza o piano para dar um toque erudito à canção. “De onde veio Picasso? / Não existe Michelangelo vindo de Pittsburgh (...)/ Quando você cresce numa cidade pequena / Com a pele ruim, olhos ruins, gay e gorducho/ as pessoas acham graça de você/ A melhor coisa de uma cidade pequena/ é que você sabe que tem que dar o fora”, diz a letra.
A já citada generosidade de Andy Warhol é retratada em “Open House”, numa referência direta à Factory, o estúdio/ atelier do artista onde qualquer pessoa podia ser uma estrela, ter os seus quinze minutos de fama. Ao mesmo tempo, a fragilidade emocional de Warhol também é citada. “Dou pequenos presentes às pessoas, assim eles se lembrarão de mim”, confessa o artista personificado na voz de Lou Reed.
A importância e poder do dinheiro na arte é o tema central de “Style it Takes” com um belo e irônico jogo de palavras de Reed cantadas por John Cale. “You've got the money, I've got the time/ You want your freedom, make your freedom mine/ (…)'Cause I have the style it takes/ and you know the people it takes”, em inglês mesmo que é para não perder o sentido.
“Work” é uma espécie de conversa entre Reed e Warhol acerca da obsessão deste último pelo trabalho. Já “Trouble With Classicists” trata do preconceito que as obras de Andy sofriam por parte dos mais conservadores. “O problema de um classicista é que ele olha para uma árvore/ Isso é tudo que ele vê/ Ele pinta uma árvore/ O problema de um classicista é que ele olha para o céu/ Ele não pergunta por que/ ele apenas pinta um céu”, alfineta a letra.
A angústia da rejeição de Hollywood pelos filmes “imorais” de Warhol é o tema de “Starlight”. “Faces And Names” versa sobre a insegurança do artista acerca de sua aparência. “Se todos parecessem a mesma pessoa, e todos tivessem o mesmo nome/ Eu não teria inveja de você/ e você não teria inveja de mim”.
Dois terços do disco dedicam-se basicamente a fatos e passagens da vida de Warhol. Mas é nas suas últimas cinco canções que o álbum realmente ganha razão de existir e Lou Reed resolve se desarmar e tocar em temas delicados. Temas como a tentativa de assassinato que Warhol sofreu em 1968 ao levar três tiros de Valerie Solanis – uma feminista radical que participou de alguns de seus filmes e que cometeu o crime sob a alegação de que Warhol “exercia muito controle” sobre sua vida (Lennon /Chapman alguém?). O atentado quase matou Warhol e o deixou com seqüelas (físicas e emocionais) pelo resto da vida.
Em “I Believe”, além de narrar todos os passos de Solanis no dia do crime, o carrancudo Reed ainda faz um mea culpa pelo fato de não ter deixado as picuinhas de lado e não ter ido visitar o amigo no hospital. “Nobody But You” trata do medo e angústia da morte pela qual Warhol passou durante o período pós-atentado – ele sofreu com sangramentos das cicatrizes durante os quase vinte anos de vida posteriores ao ataque.
A música mais impressionante de todo o álbum, entretanto, é “A Dream”, onde John Cale – amparado por um arranjo sombrio, quase fúnebre – lê uma espécie de reflexão de Warhol, já moribundo em seu leito de morte, acerca de sua trajetória pessoal e artística. A “música” termina com Cale suspirando como se estivesse morrendo. Aqui o lado mais assustador do Velvet se faz presente.
Na época do lançamento do disco, muitos pensaram se tratar de partes extraídas de um diário real de Warhol. Lou Reed, no entanto, diz não ser verdade e que foi ele quem inventou o texto. Real ou não, o fato é que no dito cujo vê-se um Warhol ressentido pelo fato de Reed não tê-lo convidado para seu casamento e de sempre ignorá-lo em público. “Eu odeio Lou, de verdade”, diz um Warhol rancoroso. Se terminasse aí o disco já seria merecedor de entrar para a lista de clássicos da música popular do século XX. Porém, Lou Reed ainda consegue surpreender mais uma vez e compõe a mais bela canção do álbum. Em “Hello, It’s Me” ele expurga todos os seus demônios e escreve uma verdadeira carta de amor em primeira pessoa a Warhol, pois segundo explica na canção, os diários de Andy não são um epitáfio digno. Poucas vezes foi possível ver Lou Reed tão dócil como aqui. Aposto que Drella ficaria feliz com a homenagem. Qualquer um ficaria.
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* "Songs For Drella" - Lou Reed & John Cale (1989)
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Abaixo o vídeo de Reed & Cale tocando "Small Town"

Cage, pipoca e refrigerante

segunda-feira, 28 de janeiro de 2008

Depois de sair do cinema fica fácil saber porque A Lenda do Tesouro Perdido: o Livro dos Segredos [National Treasure: The Book of Secrets, Jon Turteltaub, 2007] se destacou como uma das maiores bilheterias de fim de ano lá nos Estados Unidos: ele consegue ser muito mais bacana do que o original – lançado em 2004 – associado com uma paiera federal. Típico dos filmes pipoca de Jerry Bruckheimer.

E isso não significa de modo algum que o filme seja ruim. Nada disso. Livro dos Segredos traz a continuação da história de Ben Gates, vivido por Nicolas Cage, um caçador de tesouros que descobriu um tesouro templário dos maçons no filme original. Nessa parte da história, Cage precisa descobrir o mistério que envolve as 18 páginas desaparecidas do diário de John Wilkes Booth, o assassino do presidente Abraham Lincoln e inocentar um ancestral seu, que foi acusado de ser um dos integrantes do grupo que arquitetou seu assassinato.

E para isso, além de todo o elenco do filme original, Cage conta com reforços de peso para ajudar a contar essa história ao telespectador: Ed Harris e Helen Mirren se juntam ao time. E nenhum deles perde tempo tentando enganar a platéia – eles estão todos reunidos pra fazer você se divertir sem ter que pensar muito, misturando Indiana Jones com Missão Impossível. Fica claro, desde o início, que o filme não é pra ser levado tão a sério. É aí onde a paiera pega.

Uma coisa é você contar uma história sobre segredos da maçonaria – uma sociedade que já é, em sua essência, secreta – [que, a título de curiosidade, são interessantíssimos] e cometer crimes intencionais com base – em sua maioria – na sorte. Isso foi o primeiro filme. Agora, contar essas histórias e cometer crimes intencionais se infiltrando e saindo ilesos de lugares como a Casa Branca, o Palácio de Buckingham ou até mesmo raptar o presidente dos Estados Unidos e fazer tudo isso parecer muito fácil fica complicado. É mole ou quer mais?



Voight, Cage, Mirren e Kruger: só pela diversão

Como diria Zé Simão, é mole sim, mas sobe! A história, apesar de paiuda, é totalmente excelente e ainda por cima, os mitos são mostrados na tela como virtualmente possíveis, o que significa que ela te prende do começo até o fim, mesmo sabendo que tudo é potencialmente absurdo. Filme pipoca é assim: uma das coisas mais importantes é o ritmo e a adrenalina. Todo mundo acompanha até o fim sem tirar o olho da tela e no fim ainda acha super bacana. Prova disso foi o cara que sentou na mesma fileira que eu no cinema. O cinema todo escutava ele dar gritos de “U-hu!”.

Mas nesse caso a fórmula foi um tanto diferente. Turteltaub mescla de forma bastante eficiente os momentos de adrenalina com ‘comic reliefs’. É isso aí, esse filme é dez vezes mais engraçadinho do que o anterior. E quando eu digo engraçadinho, não significa necessariamente que ele consiga ser engraçado a cada gracinha. Felizmente, não chega a ser grave e você acaba rindo até das piadas mais sem graças, simplesmente pelo prazer de rir.

Sem erros maiores, noves fora, no final das contas Livro dos Segredos acaba por ser um ótimo divertimento para um final de semana e, também, um blockbuster natural que ainda vai faturar muito por aí. Lembra de pegar pipoca e refrigerante, afinal, onde já se viu filme pipoca sem pipoca? Aproveita, porque acompanha bem.
A Lenda do Tesouro Perdido: Livro dos Segredos (2007)
Jon Turteltaub











De carona em carona

domingo, 27 de janeiro de 2008

Dez anos depois de escrito, On The Road, de Jack Kerouac, finalmente era lançado em 1957. Após sete anos de estrada, Jack só precisou de três semanas, um rolo de papel telex, Charlie Parker na vitrola e boas doses de benzedrina para botar tudo em palavras. O original foi recusado durante anos e Jack só conseguiu que a Viking Press lançasse On The Road com 120 páginas a menos e prejuízos à prosa espontânea de Kerouac. Mesmo assim, On The Road ganhou status de “bíblia da geração beat”.

A geração beat nasceu no final da década de 1950 e início da década de 1960 com os escritores Allen Ginsberg, Bill Burrounghs e Jack Kerouac. Os beats não queriam ficar parados, queriam viajar, queriam sexo, drogas e rock and roll, queriam fugir da vidinha quadrada norte-americana pós-guerra. Kerouac tirou a palavra “beat” de “beatitude”, mas logo percebeu que a palavra também tinha tudo a ver com “batida”, “porrada”, “pulsação” e até “exausto” (“beated”), ou seja, ela tinha tudo a ver com a geração inquieta em evidência. Assim, Jack foi considerado o pai da geração beat e On The Road o livro obrigatório para quem quer entender todos os movimentos culturais que vieram depois dele.

Sal Paradise, o alter-ego do autor, é um jovem universitário de Nova Jersey que, após a primeira viagem pelos Estados Unidos, reencontra Dean Moriarty, personagem baseado em Neal Cassidy, um delinqüente juvenil com quem Kerouac trocava cartas. A espontaneidade, a sonoridade e o estilo verborrágico beat do livro são inspirados justamente em Cassidy. Dean é um rebelde porra louca que procura Sal para que este o ensine a escrever, mas é na estrada que a relação de Sal e Dean se constrói. Dean é o tipo de cara que teria o mesmo efeito sobre qualquer tipo de pessoa que conhecesse, ele funciona como a “pilha” Sal. Sua inquietude atordoante e pura é contagiante. Quanto a Sal, ele é exatamente o que qualquer um de nós é: um cara com suas dualidades, preguiças e impulsos.

O que coloca o livro em evidência na década de 60 é o estilo que Kerouac inaugura. O ritmo frenético da narrativa e a linguagem das ruas e estradas chamam mais atenção do que as personagens. Hoje, não nos causa espanto esse tipo de literatura, mas é exatamente a obra de Kerouac que apresenta essa sonoridade literária ao mundo. A descrição fiel da paisagem suburbana parece complementar a personalidade das personagens que surgem ao longo da estrada. Essa descrição de um ambiente não explorado (nem mesmo por quem fazia parte dele) é outra novidade para a época. Não é à toa que Bob Dylan e Chrissie Hynde fugiram de casa ao ler o livro.

On The Road influencia até quem não o leu. Quem admira Jim Morrison ou lê Charles Bukowski está indiretamente ligado a Jack Kerouac e à geração beat. Certamente vai te dar uma vontade louca de botar uma mochila nas costas e ir pelo menos até a esquina depois de ler o livro.
Em 1997, Francis Coppola, detentor dos direitos da obra, anunciou a produção do filme baseado no livro, com Johnny Depp no papel principal e direção de Gus Van Sant. O filme não saiu. Em 2005, Coppola cedeu os direitos a Walter Salles e parece que dessa vez o filme sai.


On The Road
Editora Penguin USA









On The Road - Pé Na Estrada
Editora L&PM
Tradução de Eduardo Bueno

James Bond às avessas

quinta-feira, 24 de janeiro de 2008

“Constantine. John Constantine, asshole!”. Ele não é nenhum agente secreto, mas é assim que John Constantine – personagem de histórias em quadrinhos criado por Garth Ennis – se apresenta a seus inimigos.

Ele é inglês, louro e tem olhos azuis – e há quem diga que o personagem foi feito sob medida para ser interpretado pelo cantor Sting, mas nessa adaptação da HQ Hellblazer, Constantine [Constantine, Francis Lawrence, 2005] é americano, moreno e de olhos castanhos, interpretado por Keanu Reeves. Já sei, já sei... quem é fã xiita com certeza vai passar longe do filme... só que é exatamente a interpretação dele que dá ao personagem uma espécie de liberdade. Ele se sente à vontade em sua arrogância, manias e gestos.

Mas não é que deu certo? Constantine é um anti-herói e um egoísta completo que enxerga anjos e demônios em nosso plano espiritual, mas está condenado a morrer, por conta de um câncer fodido no pulmão, e a ir para o inferno, por ser considerado um suicida – um pecado mortal aos olhos do tio lá de cima. E o lance aqui é que ele precisa ajudar uma detetive a resolver o caso do suicídio de sua irmã gêmea – e se vê no meio de uma guerra entre Deus e o Diabo. Vixe...

Só que Constantine não está nem aí, afinal, isso não é novidade pra ele – o que realmente importa para ele é salvar a própria pele e deixar esse lance de salvar o mundo pra heróis de verdade como o James Bond [tsc...]. O problema é que está na hora do “Tio Lu” vir buscar a alma do rapaz. E ele está prestes a descobrir o que vai acontecer com ele caso ele tente pular fora dessa vez.



O inferno é aqui, amigo. UIA.


O filme mexe, em sua essência, com um tema bastante delicado: a questão da religião, espiritualidade... e todo mundo conhece aquele ditado “Mulher, futebol e religião não se discutem”, mas Francis Lawrence o faz com muita competência, mostrando um respeito total a muitas das religiões mostradas no filme – enchendo a tela de anjos e demônios, tão normais que poderiam ser qualquer um de nós e mostrando que o Inferno fica logo ali...

E ele também é eficiente o suficiente no quesito charme – afinal de contas, não é fácil adaptar uma história originalmente feita para acontecer em Londres, se passar em Los Angeles. Mas isso mal se nota pois o diretor faz uso inteligente do fator noite, [o filme é 90% filmado durante a noite] também apelando para todas aquelas mitologias sobrenaturais a respeito da própria.

Constantine é também – literalmente – um destruidor de dogmas e clichês. Aqui os anjinhos têm asas, mas isso não significa que eles são naturalmente bonzinhos, como diz a lenda. Sabia, por acaso, que o diabo também teve um filho? Mas Jesus nem dá as caras por aqui. E a Bíblia lá de baixo, conhece? Pois bem.

E o maior destaque do filme está – talvez – nas seqüências finais. Ela foge completamente de tudo aquilo que pode ser considerado ‘clichê’. Mas isso, quem vai descobrir é você depois de conferir o filme.

O filme é surpreendente em vários aspectos. Além disso, existem filmes que são adaptados de histórias em quadrinhos e livros e que são um desastre. Neste caso, mesmo o filme não sendo aquilo o que os fãs mais xiitas queriam, caso você nunca tenha lido uma página de Hellblazer pode se sentir compelido a começar a lê-la. Aconteceu comigo.


Constantine (2005)

Francis Lawrence











O último esforço

segunda-feira, 21 de janeiro de 2008

Ainda dá tempo pra um último esforço


Desde 1997, quando foi ao ar o último episódio de Os Cavaleiros do Zodíaco, os fãs foram completamente abandonados com aquela sensação de que faltava alguma coisa. E faltava mesmo. Faltava uma saga inteira que ainda não tinha sido adaptada para a TV. A pergunta era exatamente esperar até quando?

A espera acabou em 2002, quando a Toei, responsável pela adaptação, liberou os primeiros 13 episódios da última saga, Hades, que na realidade só chegou por aqui lá pelo final de 2005 – mas vamos ser sinceros que a galera correu pra internet e arrumou tudo por lá antes disso.

Essa nova saga é dividida em três partes: Santuário, Inferno e Elísios, nos apresentando – além de personagens novos – elementos antigos que são colocados a um novo e eficiente uso. Acompanha...

Hades nos solta pouco depois da derrota de Poseidon como se estivéssemos em uma outra dimensão: os cavaleiros de bronze são personas non gratas no Santuário sob o risco de morte caso apareçam por lá. Eis que cavaleiros que há muito estavam mortos retornam a vida. E eles querem a cabeça de Atena! Sabendo disso, Seiya e seus companheiros entram de gatunos no local e se vêem no meio de uma guerra santa entre a deusa e Hades, o senhor dos infernos.

Hades consegue melhorar aquilo que já era considerado bom antes: os animadores, sabendo do sucesso que a série tinha se tornado, capricharam até o último detalhe, usando até alguns toques de CG, o que ajudou para dar mais exuberância visual; a história é elevada a tal nível nos quesitos mitologia, drama e sacrifício que ela independe das pancadarias para ser considerada “muito boa”.



Mu de Áries quebrando o pau. Vixe.



Aqueles que acompanharam a série integralmente vão se espantar com alguns detalhes que elevam Hades do patamar “muito bom” para o “sensacional”, mas é claro que essa saga, composta por 25 episódios – por enquanto – também pode ser vista independentemente sem muitos problemas graças ao sistema de flashbacks usado durante o decorrer da história.

Já na segunda parte da saga, Inferno [episódios 14 a 25] a história perde o gás e a adrenalina que Santuário, os primeiros 13 episódios, tinha e entra em uma jornada interior um tanto maçante no começo, mas ela recupera o fôlego – gradualmente – do meio para o final, fechando essa fase com uma cena que pode ser considerada antológica.

Outra coisa que – infelizmente – pode ser considerado um ponto “fraco” da fase Inferno é a dublagem, que nessa fase mudou de estúdio [passou da Álamo para a Dubrasil] e alguns dubladores desistiram do projeto, por motivos diversos – o que pode causar estranhamento em alguns casos – mas o mais importante é mesmo a história.

Agora, a terceira parte da saga, Elísios, - a última parte da última saga dos Cavaleiros, aquele "último esforço" - ainda está em produção lá na terra do sol nascente. E eles vão sair por lá – sempre em pares – entre março e agosto desse ano. E não chora não, ainda dá tempo de gritar “Meteoro de Pégaso” mais uma vez.

Thumbs up!
Cavaleiros do Zodíaco: Hades (2002)
Massami Kurumada / Shingo Araki



O Homem enquanto ser questionador

domingo, 20 de janeiro de 2008

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“Será que é tão inconcebível assim tentar compreender Deus? Porque Ele se esconde em promessas e milagres que não vemos? Como podemos ter fé se não temos fé em nós mesmos? O que acontecerá com aqueles que não querem ter fé ou não a têm? Por que Ele vive em mim de forma tão humilhante apesar de amaldiçoá-lo e tentar tirá-lo do meu coração? Por que apesar de Ele ser uma falsa realidade eu não consigo ficar livre?”. Essas são apenas algumas questões levantadas por Antonius Block no filme “O Sétimo Selo”. Antonius é um cavaleiro medieval que retorna à Suécia, sua terra natal, após servir ao exército nas Cruzadas. Aterrorizado pela guerra, ele entra em crise existencial já que os anos dedicados à batalha de nada serviram (as Cruzadas tinham como objetivo reunificar o Cristianismo e colocar Jerusalém novamente sob comando dos cristãos). Busca um sentido na vida, enfim.
O filme começa com Antonius acordando numa praia pedregosa ao lado de seu fiel companheiro de batalha. Após fazer o ritual matutino, eis que surge um homem branco, pálido ao extremo, sem nenhum pêlo no corpo e todo trajado em preto. “Quem é você?”, indaga o cavaleiro. “Sou a Morte”, responde o intruso. “Venho te acompanhando há muito tempo”, completa. Ela então abre os braços como se convidasse Antonius para um passeio sem volta. Apesar da revelação assustadora o cavaleiro não se mostra nem um pouco surpreso e desafia a Morte para uma partida de xadrez. Se ela vencer pode levá-lo consigo, caso contrário deixará o cavaleiro em paz.
Filme com enredo tão genial dificilmente seria feito nos dias de hoje, imagine então o alvoroço causado em 1956, ano em que o sueco Ingmar Bergman realizou esta obra-prima do cinema. Aliás, o cenário cinematográfico da época também era muito semelhante ao dos dias atuais. Eram poucos os que realmente faziam filmes com a intenção de criar uma obra de arte e não mero divertimento para as massas. Bergman foi além e criou um cinema de sondagem psicológica. Talvez tenha sido um dos primeiros cineastas – senão o primeiro – a tratar temas como Deus, religião, amor e morte de forma profundamente reflexiva adotando pensamentos filosóficos. Isso praticamente não existia até então. Quem quisesse se aprofundar na substância do pensamento buscava um livro e não um filme. “O Sétimo Selo” vem para, de certa forma, consolidar a sociedade pós-literária.
Esse viés questionador de Bergman talvez possa ser explicado pelo passado do diretor. Filho de pastor luterano, ele teve uma infância difícil e rígida marcada por diversos traumas físicos e psicológicos. E isso, obviamente, refletiu diretamente em sua obra. À época em que o filme foi lançado, a Europa vivia a tensão da Guerra Fria e sob o temor de a qualquer momento o mundo ser destruído por uma bomba atômica. Sagazmente, Bergman optou por ambientar o filme na Idade Média, período em que a Europa passava por maus bocados com a falência do Cristianismo e era assolada pela Peste Negra. O título do filme é tirado de uma passagem bíblica do “Livro das Revelações” em que é revelado nada mais nada menos do que o Apocalipse.
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A clássica cena do jogo de xadrez com a morte
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Essa idéia de caos é retratada na tela pela bela fotografia em preto e branco (Bergman seguiu na contramão da maioria dos cineastas da época que haviam se encantado com a nova tecnologia Technicolor) e pela forma como o diretor retrata o período. Um bom exemplo disso é quando um grupo de atores saltimbancos encena uma peça num vilarejo e todas as pessoas estão se divertindo alegres e sorridentes. Ao passo em que uma procissão aterrorizante chega com pessoas se auto-flagelando e idosos destruídos pela peste, a alegria nos rostos do público dá lugar à angústia e ao desespero.
O filme lida com estes sentimentos no decorrer de praticamente todos os seus 100 minutos de duração. Mais do que o sentido da vida, o cavaleiro Antonius Block (alter ego do diretor) busca saber qual o sentido da morte. Para isso, não se furta em tentar salvar uma linda jovem que está sendo levada à fogueira pela tal procissão acusada de bruxaria e de ter relações sexuais com o diabo. O pensamento de Block faz sentido, pois o Diabo talvez seja quem mais contato tenha com Deus. Para tentar prolongar a sua busca por uma prova da existência de Deus, do sentido da vida ou da morte, Block vai tenta adiar cada vez mais o xeque-mate inevitável de sua partida de xadrez. Enquanto isso, a Morte vai tratando de confundir ainda mais a cabeça do cavaleiro atormentado. Respostas emblemáticas como, por exemplo, “não há respostas” ou “talvez não haja ninguém” - quando indagada sobre o porquê de Deus não se manifestar - são recorrentes.
Apesar do tema pesado, o filme em momento algum cai na chatice e por vezes chega a ter momentos cômicos como quando a Morte cerra uma árvore para dar fim à vida de um dos atores saltimbancos. Além de implacável, a morte também é traiçoeira.
Na cena final do filme, Bergman acena para a esperança. Não quero revelar aqui quem sobrevive a essa caçada da Morte, mas pode-se dizer que o diretor deixa como única opção de salvação a vida através da arte, pois tudo morre, mas a obra fica. “O Sétimo Selo”, sem dúvida, é um filme mais que fundamental para quem aprecia cinema em sua forma mais pura e genial.

“O Sétimo Selo”, (1956)
Dir.: Ingmar Bergman