O Homem enquanto ser questionador

domingo, 20 de janeiro de 2008

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“Será que é tão inconcebível assim tentar compreender Deus? Porque Ele se esconde em promessas e milagres que não vemos? Como podemos ter fé se não temos fé em nós mesmos? O que acontecerá com aqueles que não querem ter fé ou não a têm? Por que Ele vive em mim de forma tão humilhante apesar de amaldiçoá-lo e tentar tirá-lo do meu coração? Por que apesar de Ele ser uma falsa realidade eu não consigo ficar livre?”. Essas são apenas algumas questões levantadas por Antonius Block no filme “O Sétimo Selo”. Antonius é um cavaleiro medieval que retorna à Suécia, sua terra natal, após servir ao exército nas Cruzadas. Aterrorizado pela guerra, ele entra em crise existencial já que os anos dedicados à batalha de nada serviram (as Cruzadas tinham como objetivo reunificar o Cristianismo e colocar Jerusalém novamente sob comando dos cristãos). Busca um sentido na vida, enfim.
O filme começa com Antonius acordando numa praia pedregosa ao lado de seu fiel companheiro de batalha. Após fazer o ritual matutino, eis que surge um homem branco, pálido ao extremo, sem nenhum pêlo no corpo e todo trajado em preto. “Quem é você?”, indaga o cavaleiro. “Sou a Morte”, responde o intruso. “Venho te acompanhando há muito tempo”, completa. Ela então abre os braços como se convidasse Antonius para um passeio sem volta. Apesar da revelação assustadora o cavaleiro não se mostra nem um pouco surpreso e desafia a Morte para uma partida de xadrez. Se ela vencer pode levá-lo consigo, caso contrário deixará o cavaleiro em paz.
Filme com enredo tão genial dificilmente seria feito nos dias de hoje, imagine então o alvoroço causado em 1956, ano em que o sueco Ingmar Bergman realizou esta obra-prima do cinema. Aliás, o cenário cinematográfico da época também era muito semelhante ao dos dias atuais. Eram poucos os que realmente faziam filmes com a intenção de criar uma obra de arte e não mero divertimento para as massas. Bergman foi além e criou um cinema de sondagem psicológica. Talvez tenha sido um dos primeiros cineastas – senão o primeiro – a tratar temas como Deus, religião, amor e morte de forma profundamente reflexiva adotando pensamentos filosóficos. Isso praticamente não existia até então. Quem quisesse se aprofundar na substância do pensamento buscava um livro e não um filme. “O Sétimo Selo” vem para, de certa forma, consolidar a sociedade pós-literária.
Esse viés questionador de Bergman talvez possa ser explicado pelo passado do diretor. Filho de pastor luterano, ele teve uma infância difícil e rígida marcada por diversos traumas físicos e psicológicos. E isso, obviamente, refletiu diretamente em sua obra. À época em que o filme foi lançado, a Europa vivia a tensão da Guerra Fria e sob o temor de a qualquer momento o mundo ser destruído por uma bomba atômica. Sagazmente, Bergman optou por ambientar o filme na Idade Média, período em que a Europa passava por maus bocados com a falência do Cristianismo e era assolada pela Peste Negra. O título do filme é tirado de uma passagem bíblica do “Livro das Revelações” em que é revelado nada mais nada menos do que o Apocalipse.
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A clássica cena do jogo de xadrez com a morte
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Essa idéia de caos é retratada na tela pela bela fotografia em preto e branco (Bergman seguiu na contramão da maioria dos cineastas da época que haviam se encantado com a nova tecnologia Technicolor) e pela forma como o diretor retrata o período. Um bom exemplo disso é quando um grupo de atores saltimbancos encena uma peça num vilarejo e todas as pessoas estão se divertindo alegres e sorridentes. Ao passo em que uma procissão aterrorizante chega com pessoas se auto-flagelando e idosos destruídos pela peste, a alegria nos rostos do público dá lugar à angústia e ao desespero.
O filme lida com estes sentimentos no decorrer de praticamente todos os seus 100 minutos de duração. Mais do que o sentido da vida, o cavaleiro Antonius Block (alter ego do diretor) busca saber qual o sentido da morte. Para isso, não se furta em tentar salvar uma linda jovem que está sendo levada à fogueira pela tal procissão acusada de bruxaria e de ter relações sexuais com o diabo. O pensamento de Block faz sentido, pois o Diabo talvez seja quem mais contato tenha com Deus. Para tentar prolongar a sua busca por uma prova da existência de Deus, do sentido da vida ou da morte, Block vai tenta adiar cada vez mais o xeque-mate inevitável de sua partida de xadrez. Enquanto isso, a Morte vai tratando de confundir ainda mais a cabeça do cavaleiro atormentado. Respostas emblemáticas como, por exemplo, “não há respostas” ou “talvez não haja ninguém” - quando indagada sobre o porquê de Deus não se manifestar - são recorrentes.
Apesar do tema pesado, o filme em momento algum cai na chatice e por vezes chega a ter momentos cômicos como quando a Morte cerra uma árvore para dar fim à vida de um dos atores saltimbancos. Além de implacável, a morte também é traiçoeira.
Na cena final do filme, Bergman acena para a esperança. Não quero revelar aqui quem sobrevive a essa caçada da Morte, mas pode-se dizer que o diretor deixa como única opção de salvação a vida através da arte, pois tudo morre, mas a obra fica. “O Sétimo Selo”, sem dúvida, é um filme mais que fundamental para quem aprecia cinema em sua forma mais pura e genial.

“O Sétimo Selo”, (1956)
Dir.: Ingmar Bergman

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